São Francisco de Assis, modelo de Humildade

São Francisco de Assis, modelo de Humildade

 

 

 

I. O que é a Humildade?

É uma virtude que pertence à virtude cardeal da temperança e tem por fim moderar as nossas loucas aspirações de grandezas.

Humildade vem de humus: terra. Humildade quer dizer: o que está abatido até a terra. A virtude da humildade modera, regula as tendências da alma que deseja se elevar acima dos limites traçados pela razão e pela graça.

É um conhecimento de si mesmo sem as ilusões do amor-próprio. Uma luz que faz o homem se conhecer e conhecer melhor a Deus.

É o desprezo de si até o amor de Deus, como o orgulho é o amor de si mesmo até o desprezo de Deus no expressivo dizer de Santo Agostinho (1).

Enfim “a humildade é a verdade” diz Santa. Teresa. É um ato da inteligência e da vontade. A inteligência que conhece a sua miséria e pequenez e reconhece a grandeza de Deus. A vontade que se abate e se humilha, enfim.

Pode-se então definir a humildade:

Uma virtude sobrenatural que, pelo conhecimento que nos dá de nós mesmos, nos inclina a nos. estimarmos em nosso justo valor, e a buscarmos o abatimento e o desprezo (2)

Noverim me, nouerim te!, diz Santo Agostinho: — Que eu me conheça, ó Senhor, e que eu Vos conheça!
Noverim me ut despiciam me! – Que eu me conheça para que me despreze!
Noverim Te ut amem Te! – Que eu Vos conheça, para que Vos ame!

Eis aí a humildade. É, sim, a verdade pura. Para ser humilde basta, pois, ser verdadeiro. Reconhecer e confessar nossas misérias, nosso nada. E, mais ainda, aceitar esta condição miserável, eis ai a dupla humildade de espírito e de coração.

Quando a alma esclarecida sobre a sua condição, se vê bem pequenina e pobre, então, pode dizer ao Senhor:

“Nada sou, nada tenho, nada posso. Só tenho de próprio a miséria e o pecado, o nada. Na ordem natural e sobrenatural nada tenho e tudo recebi de Vós”

Quando de coração se chegou a reconhecer e viver praticamente de acordo com estes sentimentos, eis a humildade.

II. Necessidade da Humildade

A humildade é necessária absolutamente para se chegar à perfeição. A essência da perfeição é o Amor Divino, a Caridade. Entretanto, como Deus não concede o seu Divino Amor aos orgulhosos, vem a ser a humildade o fundamento, o alicerce e a condição essencial de toda perfeição cristã.

E é neste sentido que dizem os Santos Padres ser a humildade a essência perfeição e a sua condição principal.

Não se pode construir sem- alicerce.

“Quereis elevar bem alto o edifício da perfeição?” pergunta Santo Agostinho. — “Pensai antes de mais nada em cavar bem fundo os alicerces da humildade!” (3).

“A primeira virtude dos cristãos é a humildade” afirma São Jerônimo: prima virtus christianorum, humilitas (4).

“Deus só dá a sua graça aos humildes — humilibus autem dat gratiam” (5) diz o apóstolo.

A humildade é, pois, a chave dos tesouros de Deus. E assim como de nada nos vale um tesouro escondido e trancado se não temos a chave para o abrir, assim de nada nos valem os tesouros do Amor Divino e da graça, se não temos a chave da humildade. Nenhuma virtude é mais exaltada na Sagrada Escritura onde, no dizer de Santo Agostinho, não há página que não contenha pelo menos em substância estas palavras: Deus resiste aos soberbos e dá sua graça aos humildes.

Davi e Golias, Amã e Mardoqueu, o Fariseu e o Publicano, Madalena, a Samaritana, a Cananéia, o bom ladrão, eis, entre muitos, modelos tocantes de lições da humildade nos livros santos. O Antigo Testamento e o Evangelho contem lições de humildade em cada página provando-nos ser esta virtude realmente o fundamento da perfeição, e a chave dos tesouros da graça, a virtude absolutamente necessária a todo cristão.

III. Humildade: a Raiz da Santidade

Dissemos que a humildade é o alicerce da perfeição. É mais próprio chamá-la raiz. O piedoso Pe. J. Dosda no seu livro “L’union avec Dieu” cita uma página admirável de reflexões, diz ele, traçadas por uma pessoa morta em odor de santidade. Ei-la:

“A raiz tira da terra a seiva da vida que faz crescer as grandes árvores. Seja amargo ou insípido o que ela suga, pouco importa. É a vida que há de receber e dar. A raiz é sempre desconhecida, calcada aos pés. Trabalha em segredo para uma glória que nunca lhe virá. Recebe para dar. Quem é que louva uma raiz quando colheu de uma árvore algum fruto belo e saboroso? Ai! Nunca recebe uma gota de orvalho, um raio de sol. Não goza a frescura das brisas. Em torno dela tudo é frio e seco, isolamento e silêncio.

Se mão benfazeja derrama sobre ela um pouco de água fresca, só a recebe muito suja.

Alimenta-se de pura lama. O que sustenta a raiz e a torna vigorosa, cheia de seiva? O esterco.

Se uma pobre raiz julga ter o direito de sair um pouco debaixo da terra, e vir respirar o ar de fora, logo a foice a corta sem dó. Ela não pode absolutamente aparecer. A árvore se carrega de frutos. E os bons frutos nunca ela os há de ver sequer. Os maus, os frutos podres, estes só, lhe serão atirados como esterco.

E se a raiz quisesse ver a sua obra de vida, o que produz a seiva que ela fornece, deixaria de ser raiz, ficaria bem seca e nada mais produziria.

Quanto mais oculto e profundo é o trabalho de uma raiz tanto mais fecundo.

E quando esta raiz é uma alma! Ei-la quanto mais na aparência aniquilada, tanto mais produz para a glória de Deus e a salvação dos outros.

Se quereis viver unido a Nosso Senhor, oh! Antes de mais nada, é preciso ser raiz, isto é, ser humilde, oculto com Jesus em Deus para ser fonte de Vida em Jesus”

Como é belo isto! Compreendemos agora melhor o papel da humildade como raiz da perfeição?
IV. Humildade e Amor

É preciso ser humilde para amar e é preciso muito amar para ser humilde. A humildade abre os alicerces onde o Amor constrói o edifício da perfeição. Humildade e amor são inseparáveis como a raiz e a árvore, o alicerce e a casa. São virtudes irmãs.

“A humildade, diz São Próspero (6), é companheira da caridade e a caridade da humildade. E ambas destroem o orgulho”

Sem humildade não é possível o amor de Deus.

“Eu não compreendo, dizia Santa Teresa, que se possa ter humildade sem amor e nem amor sem humildade” (7)

“Para obter o amor divino, diz Santa Madalena de Pazzi, só há meio: humilhar-se”

As almas seráficas foram as mais humildes e pequeninas. Vede São Francisco, que a Santa Igreja chama “pauper et humilis” e por isto também o denomina Seráfico.

Humilde e pobre e, ao mesmo tempo, abrasado nos ardores da Divina Caridade, consumido no amor. Santa Teresa tão humilde, foi transpassada pela seta misteriosa do Amor.

Duas festas litúrgicas celebram as ordens Franciscana e Carmelitana: — a transverberação do coração de Santa Teresa, e, em 17 de setembro, a dos Sagrados Estigmas de São Francisco. Duas almas humildes, duas almas seráficas!

Lede a vida dos santos seráficos, isto é, os que mais se distinguiram pelo fogo do amor. Foram os mais humildes, os mais aniquilados e pequeninos aos seus próprios olhos. Oh! Sim, quem quiser se abrasar nas chamas da Divina Caridade há de começar pela humildade.

Humilibus dat gratiam. Deus concede aos humildes a sua graça. Esta graça é o Amor. Podemos bem dizer:

Humilibus dat amorem — Aos humildes Deus concede o seu amor

 

V. A Humildade e os Santos

Os santos conhecem mais a Deus; por isto são mais humildes. Dizem que Santo Tomás e Santa Teresa, luzeiros da Igreja, gênios sublimes, nunca foram nem sequer tentados pelo orgulho ou vaidade. E por que? Não tiveram eles um conhecimento tão elevado de Deus? O orgulho é fruto de nossa ignorância do que é Deus e do que somos ou podemos.

“Eu não sei se sou humilde, dizia Santa Teresinha, mas sei que eu vejo a realidade em todas as coisas” (8)

É justamente o que veem os homens esclarecidos pela luz superior da fé: a realidade. E haverá maior realidade do que o nosso nada, nossa miséria?

Não é mister grande esforço para compreender a humildade: — basta abrir os olhos e ver a realidade, ver as coisas tais como são, sem ilusões nem fantasias.

“Senhor! Exclamava São Francisco — Senhor! Quem sou eu e quem sois Vós?”

Santa Teresa, falando das graças extraordinárias que Deus lhe concedia:

“Oh! O Senhor faz comigo como se faz com um muro velho que ameaça cair de todo lado; — enche-me de estacas por toda parte pela sua graça”

“Todas as visões, revelações e sentimentos celestes, diz São João da Cruz, não valem o menor ato de humildade. A humildade tem os efeitos da caridade” (9)

O sinal certíssimo da santidade é a raridade na humildade. Dizia o Sagrado Coração à sua serva Santa Margarida Maria:

— “Quero saber, minha filha, por que me perguntas a razão das minhas visitas, descendo até junto de ti?
— Vós sabeis, meu Senhor, que não sou digna.
— Aprende isto, minha filha: quanto mais te esconderes no teu nada, tanto mais a minha grandeza te irá procura?, respondeu Jesus (10).

“Senhor! Concedei-me o tesouro da humildade”, pedia o santo Doutor de Hipona (11). Na sua autobiografia conta Santa Teresa que Nosso Senhor, para lhe conceder alguma graça particular e importante, sempre escolhia o momento em que ela acabava de se humilhar profundamente no seu interior (12).

“A alma verdadeiramente humilde, revelou Jesus à santa, é a que conhece o que eu posso e o que ela não pode”

“A humildade é sinal de predestinação”, diz São Gregório: humilitas signum electorum (13).

Um dia, Santo Antão viu o mundo todo cheio de redes e laços do demônio. E gemeu de dor:

— “Meu Deus, quem se poderá salvar e livrar-se de tanto perigo?”

Uma voz lhe respondeu:

— “Antão, meu servo, só a humildade escapa com segurança. Quem tem a cabeça baixa não deve temer o perigo”

Oh! Sim, não há perigo para os humildes, no caminho da salvação.

Nosso Senhor mostrou a Santa Margarida de Cortona, a penitente franciscana, um trono de glória que lhe estava preparado entre os serafins pela humildade da santa aqui na terra. A humildade é a glória no céu e é remédio eficaz na terra para todos os males.

“A humildade é unguento bom para todas as feridas”, diz Santa Teresa (14)

E a santa Fundadora Sofia Barat costumava dizer:

“A humildade é uma agulha que remenda todos os buracos e rasgões, maravilhosamente”

Oh! Sejamos humildes em todas as circunstâncias de nossa vida.

A humildade é nosso tesouro. A oração de Santo Agostinho esteja sempre em nossos lábios: Senhor, que eu Vos conheça e que eu me conheça!

Santa Teresinha com o seu pequenino caminho da infância espiritual nos ensina a humildade no seu grau mais elevado — quer que sejamos criancinhas como nos ensina o Evangelho.

E nada mata o amor-próprio como o espírito de infância, diz Mons. Charles Gay. Todos queremos ser grandes. Ninguém se conforma com a sua pequenez, com as suas misérias e fraquezas. Poucos aprendem aquela ciência de se gloriar das próprias enfermidades (15) no expressivo dizer de São Paulo. E para se aproximar de Jesus, diz Santa Terezinha, é preciso ser bem pequenino. Oh! Há muito poucas almas que gostam de ser pequeninas e desconhecidas! (16).

A humildade para a santinha era o que Santa Teresa, a Matriarca do Carmelo, definia:

“A humildade consiste na verdade. Eu não sei se sou humilde, mas sei que vejo a verdade em todas as coisas (17) ”

Pouco antes da morte, naquela terrível agonia de 30 de setembro de 1897, a Superiora do Carmelo disse a Teresinha para a consolar:

— A minha filhinha, está bem preparada para comparecer diante de Deus porque sempre compreendeu a virtude da humildade. E ela confirmou em doce paz, — Sim, eu o sinto bem. Minha alma nunca procurou outra coisa a não ser a verdade… Sim, eu compreendi a humildade de coração (18).

Felizes os que compreendem a humildade de coração como o Anjo do Carmelo e Lisieux!

Para ser humilde basta ser verdadeiro. Nosso Senhor apareceu a Santa Catarina de Sena e lhe disse:

— Sabes, minha filha, o que és e o que eu sou?

Se aprenderes bem estas duas coisas serás bem-aventurada. Tu és a que não és e eu sou Aquele que sou. Nunca o inimigo te iludirá se souberes bem disto. E obterás toda clareza, toda verdade, toda graça 19).

Que pensamento belo e profundo!

A Santa Gertrudes disse Jesus:

— “Minha filha, todas as vezes que ao pensares na tua indignidade te reconheceres indigna de meus favores e te entregares ao meu amor, tantas vezes me pagarás a renda que deves dos bens que eu te dei” (20).

Oh! Temos que dar contas a Nosso Senhor dos talentos recebidos e fazer rendê-los para a vida eterna. Somos, porem, tão miseráveis, tão pobres e pecadores! Como pagar à Justiça Divina?

Sejamos humildes. Pagaremos a renda dos bens recebidos, a Deus.

O pensamento das graças recebidas longe de nos envaidecer deve nos tornar mais humildes. Quem mais recebeu, mais há de dar. Nosso Senhor revelou ao Irmão Pacífico da Ordem de São Francisco um trono de glória no céu e dos mais belos e fulgurantes.

— “Este Trono, disse o Senhor, que admiras tanto, foi de um Anjo revoltado. Agora será destinado ao humilde Francisco de Assis”

No dia seguinte à hora do recreio no convento o irmão perguntou ao seu Pai.

— Meu padre, que pensa de si?
— Eu penso respondeu, Francisco, que sou o mais miserável e o último dos pecadores!
— Como ousa dizer isto, meu Pai?
— Sim, meu Irmão, replica o Santo, estou bem convencido de que se Nosso Senhor, tivesse dado aos outros as graças que me concedeu já eles teriam aproveitado muito mais do que eu.

Bela resposta! E nós que pensamos das graças recebidas? Podemos nos orgulhar do que Deus na sua misericórdia nos doou? Ah! Se outros houvessem recebido as graças de que abusamos! Que motivos para sérias reflexões e profundo aniquilamento diante do Senhor!

Os santos foram humildes porque viviam da verdade, esta verdade que choca o nosso tremendo orgulho : — Somos nada, somos miseráveis. — Nada somos, nada temos, nada podemos.